3 de setembro de 2009

Eles fazem sorrir

Por Flávio Gomes *

Não queria ter uma relação com seu carrão cheio de botões, reboque cromado para não puxar nada, flex powers, trios elétricos, fly by wire, e ABS igual à que eu tenho com os meus. Você vai perder. Meus carros têm nome, eu converso com eles e entendo o que se passa no seu coração. Ninguém olha para você nesse esquife filmado com vidros escuros como o breu. Para mim, todos olham e acenam.

Se o seu carrão pifar no meio da rua, ou numa estrada no fim do mundo, ninguém vai parar para te ajudar. E
se alguém se aproximar, você vai achar que é ladrão. Ser um dos meus estancar no meio da avenida mais movimentada de São Paulo, vem um monte de gente empurrar. E é o pai de um que teve um igual ao meu, o tio do outro que dirigia um táxi idêntico, a avó de um terceiro que ainda tem o seu guardado na garagem que só usa para ir à feita, e se eu não souber o que fazer para ele pegar de novo, alguém saberá.

Meu kit de sobrevivência nas rua é barato. Um joguinho de ferramentas, desses que se compram em camelôs, com uma chave de fenda, um alicate, algumas chaves de boca. Um frasco com gasolina para jogar no carburador de vez em quando, um galão de água para refrescar o radiador. Oh, que coisa mais primitiva, dirá você.

Ok. Tenha uma pane no seu carrão eletrônico para ver o que acontece. Nem tente abrir o capô. Você não sabe o que tem lá dentro. Cuidado, ele pode te engolir. Torça para o celular estar com sinal pleno e chame um guincho, a seguradora, o Papa. Sente e espere. Seu carrão só vai funcionar de novo quando conectarem um laptop nele. E prepare o talão de cheques.

Meus carros, não. Têm carburadores, distribuidores, diagfragmas, bobinas e velas, tudo à vista. Sei quando é sujeira da gasolina. Sei assoprar um giclê. Aliás, sei onde fica o giclê. Procure algo parecido na sua injeçãoeletrônica. Seu é um emérito desconhecido sem história ou currículo. Os meus têm 40 anos ou mais, já passaram por muita coisa nessa vida, e quando saíram de uma concessionária, décadas atrás, estacionaram na garagem em forma de um sonho realizado. Carro fazia parte da família, antigamente.

"Ah, mas o meu tem ar-condicionado, disqueteira e controle de tração", dirá você. Sim, mas nunca terá o prazer de dirigir de vidros abertos e cotovelo para fora da janela. Meu rádio toca as mesmas músicas, e não me faça rir com o seu controle de tração. Quantas vezes ele foi necessário?

Além do mais, existe um negócio chamado prazer. Prazer de ter algo que lhe é caro e precioso, mesmo que não valha muita coisa. Carros iguais ao seu todo mundo tem. Vejos aos milhares todos os dias, e nenhum deles tem a cara do dono. Os meu têm. E quando eles quebram, eu mesmo conserto. E eles me agradecem andando de novo, fazendo com que as pessoas sorriam quando passam, fazendo barulho e soltando fumaça.

Não há nada como um automóvel que faça alguém sorrir.

* Flavio Gomes, 41 anos, é jornalista, tem sete DKWs, quatro Volkswagens e uma Lambretta, todos fábricados entre 1958 e 1970. Veja mais em http://colunistas.ig.com.br/flaviogomes
Feed
Assine o Feed do Desventuras para acompanhar o blog no seu agregador favorito, ou receba gratuitamente todos os posts por e-mail

Deixe o seu comentário:

  1. Agradecimendo ao Flavio Gomes que gentilmente cedeu a reprodução desse texto sensacional para aqueles que adoram carros antigos!

    ResponderExcluir